Pós-digital

Há alguns meses lancei “Laboratórios do pós-digital” , uma compilação de artigos escritos desde 2009 até o começo deste ano. A expressão “pós-digital” só surgiu depois que o livro já estava quase pronto. Ou seja, o título faz menção a uma construção que não aparece ali dentro, pelo menos não articulada dessa forma. Quero tentar desfiar aqui algumas pontas disso.

O pós-digital é menos um conceito em si do que uma posição de questionamento. Não se trata de negar o digital. Pelo contrário, quero aprofundar um pouco a reflexão sobre a própria ideia de desaparecimento do digital como consequência de sua ubiquidade. A partir do momento em que o digital está em toda parte, será que ele ainda funciona como um recorte relevante para entender e interferir na maneira como as redes interconectadas influem na sociedade? Novas tecnologias estão sendo desenvolvidas a todo instante. Podemos querer que elas apontem para um futuro mais aberto, participativo e justo. Acredito que a melhor maneira de fazer isso seja parar de falar sobre “o digital” como algo em si.

O discurso do digital foi assimilado por praticamente todos os setores da sociedade. Isso toma por vezes uma forma equivocada, à medida em que se tenta de maneira fetichista opor o digital a um supostamente ultrapassado “analógico”. Ao contrário do que se pode pensar, o analógico está presente em praticamente tudo aquilo que alguns tentam chamar de “revolução digital”. Exemplos simples de operações analógicas são o movimento do mouse, as metáforas visuais da interface de usuário dos computadores e celulares contemporâneos, o modo como as redes sociais simulam e ampliam a maneira como nos comunicamos pessoalmente. Os scanners, impressoras, microfones e caixas de som são dispositivos que propiciam a conversão de informação digital em comunicação analógica e vice-versa.

Fenômenos mais recentes como as aplicações móveis, locativas e de realidade expandida adicionam ainda novas camadas nessa composição. Pode-se dizer que a maior parte dos usos que as pessoas fazem das tecnologias digitais são usos analógicos. Daí que boa parte da construção do imaginário do digital já começa equivocada, por apostar em uma oposição que não existe.

Ainda assim, aquilo que usualmente se define como digital costuma se referir às implicações de uma série de transformações efetivas: a digitalização de comunicações, cultura e entretenimento; a emergência de redes auto-organizadas que possibilitam a coordenação negociada entre pares e grupos, e gradualmente transformam relações de poder e de criação de valor; e os crescentes barateamento, portabilidade e aumento de poder de processamento dos dispositivos que dão acesso a essas redes. Pensar o digital como uma categoria específica proporcionou a potencialização de ativismo online, de projetos e metodologias colaborativas e de novas ou renovadas maneiras de trabalhar. Ao mesmo tempo, possibilitou o desenvolvimento de iniciativas afirmativas que buscam equilibrar a adoção das novas tecnologias de comunicação e das oportunidades que trazem – por exemplo naquilo que é chamado de inclusão digital.

Por outro lado, o entendimento do digital como um tema em si pode levar a uma série de distorções. À medida em que se isola o digital como uma nova realidade, os problemas que ele ocasiona passam a ser entendidos como ocorrências pontuais. E não o são. A precarização do trabalho em arranjos cada vez mais instáveis e dependentes; a profunda alienação a respeito do impacto ambiental da vida contemporânea, em especial como decorrência da produção e do descarte de eletrônicos; o surgimento de uma economia “digital” que é excludente, elitista, individualista, consumista e que não respeita a privacidade explícita ou implícita de seus usuários; as novas disputas sobre direito autoral e remuneração de criadorxs – são parte de um complexo sistema político e econômico global, e não podem ser analisadas de maneira isolada.

Se queremos moldar nossos futuros coletivos, precisamos entender que o acesso não é o maior problema . Precisamos parar de pensar em ferramentas, e voltar a ousar. Precisamos que as ideias voltem a ser perigosas. Precisamos investir em assuntos de fronteira, e experimentar para entender suas implicações éticas, estéticas, políticas e administrativas. Eu sustento que hoje em dia precisamos incorporar o digital como dimensão indissociável da nossa existência. Por isso pensar o pós-digital, entremeando o digital em todo o resto e assim esquecendo dele como instância isolada.

Nesse sentido, eu venho tentando explorar alguns temas latentes, na encruzilhada entre cultura, arte, ciência, economia, educação e sociedade. Alguns exemplos são a internet das coisas, o hardware livre, a fabricação digital doméstica, o design aberto, a geografia experimental, as cidades inteligentes, a realidade expandida, as mídias locativas, as aplicações móveis, a ciência comunitária, os hackerspaces e fablabs, e diversos outros temas nessa linha. São todos temas que tratam essencialmente do digital, mas propõem alguns passos adiante. De maneira quase arbitrária, escolhi agrupá-los ao redor de três eixos: laboratórios enredados, bricotecnologia e eversão.

Labs e Experimentação

Rede//Labs é uma plataforma criada em 2010 para promover a articulação entre diferentes iniciativas ligadas a medialabs e laboratórios experimentais do Brasil e do exterior. Realizamos um levantamento, elaboramos um edital que seria lançado pelo Ministério da Cultura (mas perdemos o timing do ano eleitoral), e organizamos um encontro nacional e um painel internacional durante o segundo Fórum da Cultura Digital, na Cinemateca Brasileira (São Paulo/SP).

O levantamento partiu de um questionamento simples, mas legítimo: se, por quê e como deveriam ser desenvolvidos hipotéticos laboratórios experimentais de tecnologias no Brasil dos dias de hoje. Dias em que – com toda a precariedade e instabilidade – o acesso a equipamentos e conectividade é muito maior do que quando os primeiros medialabs estadunidenses e europeus se estabeleceram, no fim do século passado. Dias em que o Brasil alcança alguma projeção internacional e pode assumir um papel importante, em especial no uso e suporte a tecnologias livres e abertas.

O levantamento indicou que laboratórios são de fato desejáveis – menos por uma suposta carência de acesso a tecnologias do que pela necessidade de socialização para dinamizar a criatividade aplicada nelas. Ou seja, o mais importante é que os labs possibilitem a troca de conhecimento e oportunidades, fomentem o aprendizado distribuído e incentivem a descoberta, e mesmo o erro, como parte fundamental do processo.

Uma política de labs deve estar baseada na disponibilização de metodologias, materiais e produtos com licenças livres. Deve buscar o desenvolvimento de economias baseadas na abundância e na generosidade do conhecimento livre. Deve incentivar a circulação e o enredamento, e buscar maneiras de financiar a criatividade aplicada que se alimenta da experimentação. Deve, como falei em outro artigo, fazer o amanhã pensando o depois de amanhã.

Bricotech

Nos dias de hoje, comunicar-se em rede é natural. Avós octogenárias estão em redes sociais, senadores contratam profissionais que alimentam seus microblogs (quando não publicam eles mesmos), microempresários precisam gerenciar conta de email, site institucional, blog, loja virtual, perfil no facebook, conta no twitter e por aí vai. É fácil esquecer que, mais do que usar, podemos também nos apropriar das tecnologias de forma mais profunda e crítica. Por mais que a indústria (em especial aquela parte dela que tenta transformar a internet em um jardim cercado) nos queira a todos como meros usuários consumidores de conteúdo, as partes que compõem as tecnologias de comunicação estão aí, disponíveis para reconfigurações, interpretações alternativas, desvios e inovações.

Existe um traço comum entre a cena maker, a gambiologia, o DIY (faça-você-mesmo) e seu desdobramento no DIWO (faça com outras pessoas). Um traço comum entre as ações que se desenvolvem em hackerspaces, o open design, a ciência de garagem e comunitária, o biotecnologia amadora, os projetos de hardware livre e as possibilidades (ainda não exploradas a fundo) do shanzhai. Entre a fabricação digital, a MetaReciclagem e o upcycling. Trata-se do impulso de manipular, de tomar nas mãos o conhecimento tecnológico, e utilizá-lo como instrumento para estar no mundo. É um posicionamento situado, político em sua vontade de transformação, e que tem o potencial de proporcionar uma era de invenção socialmente relevante. Eu tenho chamado essas coisas de bricotecnologia – precisamente o ponto de contato entre a sensibilidade das mãos que sabem modificar a realidade e as mentes conectadas em rede.

Evertendo

Apontei em um post recente a referência do verbo “everter”, pescado em um livro de William Gibson – autor cyberpunk, criador da própria ideia de ciberespaço. O sentido que ele tenta dar ao termo “eversão” é de surgimento de pontas do ciberespaço no “mundo real” – uma situação na qual se tornaria impossível precisar as fronteiras entre o que está no plano físico e o que está na rede. Desde os primórdios do Projeto Metá:Fora, precursor da rede MetaReciclagem, a gente já falava sobre a dificuldade de definir o que é online ou offline. Hoje em dia isso é ainda mais complexo. As redes de fato evertem. Mas que redes são essas?

A internet foi criada como uma forma de interconectar computadores de maneira distribuída, a partir de protocolos abertos e livremente replicáveis. Nos dias de hoje, estamos na iminência do surgimento de outra sorte de interconexão: milhões de dispositivos diferentes (sensores, atuadores, câmeras) estão incorporando a possibilidade de comunicação em rede.

Projetos de cidades do futuro preveem a disponibilização em tempo real de informação relevante: itinerários e horários de transporte público, gerenciamento de semáforos, dados sobre consumo de energia, sensores climáticos e afins. Sistemas de automação doméstica, com monitoramento remoto de interruptores, eletrodomésticos e portas, também se tornam acessíveis. Plataformas como o Pachube facilitam a agregação e circulação de dados gerados por esses sistemas. Aplicações locativas móveis que cruzam as redes com a malha geográfica, jogos de realidade expandida, novas maneiras de interagir com a informação – com telas touchscreen, movimentos, gestos. São pontos de contato entre o local e o remoto, que transformam completamente a nossa relação com o online.

Isso tudo pode levar ao surgimento do que está sendo chamado de internet das coisas. Mas a tendência centralizadora da indústria vem interferindo na maneira como se desenvolvem essas tecnologias, o que aponta muito mais na direção de uma coleção de intranets das coisas – espaços restritos e opacos, nos quais ninguém sabe muito bem como as coisas funcionam. Rob van Kranenburg vem tentando contrapor à badalada IOT (internet das coisas) uma proposta de IOP (internet das pessoas), que não parta do princípio da fria interconexão de objetos, e sim da compreensão de que o mais importante da rede é facilitar e otimizar a sociabilidade humana.

Como desenhar protocolos abertos e distribuídos que garantam que essas redes sejam realmente participativas e inclusivas desde o princípio, blindadas contra interferências governamentais, corporativas e golpistas? Mais uma vez, insisto: precisamos dar menos atenção a “páginas”, “conteúdo” e “acesso”; e nos concentrar mais no papel que a comunicação em rede pode efetivamente assumir na vida das pessoas. Esquecer por um instante o digital, e lembrar por que é mesmo que queremos fazer o que estamos tentando fazer.

*Este artigo foi escrito com o apoio do Centro Cultural da Espanha em São Paulo.

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