Hacklab Enredado

Felipe Fonseca

* Este artigo foi escrito com o apoio do Centro Cultural da Espanha em São Paulo.

Em agosto tive a oportunidade de participar da etapa paraense(1) do Networked
Hacklab (2) – um encontro que reuniu ativistas, artistas, hackers, pesquisadores e afins,
com o objetivo de propor uma cartografia crítica da Amazônia. O evento foi organizado
por Giseli Vasconcelos (3), em um formato dinâmico e produtivo. Foram duas
«imersivas hacklab», no começo e ao fim de agosto. Estive na primeira. Cada imersiva
estava por sua vez subdividida em dois momentos, desenvolvidos em diferentes
localidades: primeiro em Belém, e depois em Santarém.


O Networked Hacklab pôs em contato coletivos locais do Pará com um grupo de
«estrangeiros». Na primeira etapa, esse grupo de fora era composto por Tati Wells (4), o
espanhol Pablo de Soto (5), Paulo Tavares (6) e eu. O objetivo na quela fase era trazer elementos mais conceituais, falando sobre ferramentas e metodologias de mapeamento.
Pela programação, a segunda etapa (com os não-locais Bruno Tarin (7), Bruno Vianna (8)
e os colombianos da Antena Mutante (9) seria mais focada em produção audiovisual.
Os grupos locais em Belém eram vários: Qualquer Coletivo, Reconstruções, Coisa
deNegro, RedeCom, Guerrilhas Estéticas, Paracine e outros. Ricardo Folhes, pesquisador paulista que vive em Santarém, também estava por lá. Já em Santarém, foi uma articulação via Coletivo Puraqué (10) com lideranças comunitárias, ativistas, projetos como a Casa Brasil de Santarém e o Pontão de Cultura dos Tapajós. Na mediação entre os diversos grupos estaria ma própria Giseli, além de Arthur Leandro (11) e Bruna Suelen (12).
Belém é uma cidade grande, autodenominada «metrópole amazônica«. Tem uma
cena cultural efervescente, tradição artística considerável e enfrenta contradições co-muns a toda cidade grande brasileira: diferença social acentuada, especulação imobiliária,
expansão urbana desordenada, trânsito lento em decorrência da ênfase no
transporte individual. Tem séculos de uma história que a gente não estuda muito
aqui ao sul de Salvador – falha que os dias passados ao lado de Arthur Leandro acabam
por diminuir. Belém foi a sede do Estado do Grão-Pará e Maranhão (13), que em meados
do século XVIII formava uma colônia separada do Brasil. O Grão-Pará só aderiu
ao Brasil após a «independência» em 1822, e na década seguinte foi palco para a Cabanagem(14) – insurgência de negros, índios e caboclos que contou com algum apoio
nas classes altas e médias descontentes com o governo central no Rio de Janeiro. Os
cabanos controlaram a cidade por quase um ano, caso raro na época. Ainda hoje, a
região portuária representa papel fundamental na cultura de Belém – elo de conexão
por um lado com o interior da Amazônia e por outro lado com o restante domundo.
No primeiro dia, nossa base foi o Casarão Cultural Floresta Sonora (15) – um espaço
no centro de Belém, ligado à rede Fora do Eixo (16). A abertura do encontro foi na sede
do IAP, Instituto de Artes do Pará – um enclave ou armadilha, cercado por uma igreja
e umprédio do exército brasileiro. Carlinhos Vas comandava o somaberto a canjas e
interferências. O pessoal comandou uma dinâmica para nos apresentarmos uns aos
outros, empares.

No dia seguinte, migramos para o Parque dos Igarapés (17), onde ficaríamos imersos
(às vezes em sentido literal, dentro do igarapé) por três dias. O Parque fica relativamente
longe do centro e não oferece acesso à internet, o que reforçou o caráter de
contato entre pessoas daqueles dias. Foram dezenas de apresentações, debates, experimentações e conversas, sobre projetos e ações em áreas diversas: intervenção
urbana,mapeamento, ativismomidiático, direitos humanos, tecnologia, design, produção
audiovisual e musical, tecnologia, políticas públicas, e por aí vai.
Ficou a sensação de que aos poucos se desfaziam ali um monte de barreiras que
a mim eram invisíveis. Ouvi mais de uma vez que os grupos locais que estavam presentes
não costumamconversar tanto uns comos outros. Isso emsi já é um resultado
positivo do encontro. Houve também oficinas espontâneas, troca de conhecimentos
e construção de possibilidades de ação. Rolou uma intervenção durante o show de
reggae no Parque, que implicou em problemas com a segurança do local. Para um
encontro que usa o nome «hacklab», eu senti ausência de hackers, mas isso pode ser
uma condição específica de Belém.
Aproveitei a oportunidade para finalmente dedicarmais tempo ao funcionamento do protótipo de ZASF (18) – subindo uma rede autônoma local onde os presentes podiam compartilhar material.

Também coletei trilhas geográficas comoGPS, e aprendi um pouco sobre manipulação de dados geográficos. Através da ZASF também documentei o encontro (através de uma instalação do hotglue(19) na rede local – que posteriormente eu publiquei na internet (20). Invertendo o quase impronunciável (em português) nome do encontro, acabei chamando-o de “hackworked netlab”, e a brincadeira pegou. Ao fim da etapa Belém, muita energia positiva (apesar do cansaço e da gripe queme atropelou por lá) e promessas de desdobramentos.
Voamos para Santarém tarde da noite de domingo. Fomos recebidos pessoalmente
pelo Marcelo, que nos levou de Kombi até a Casa Puraqué, no bairro do Amparo.
Nos estabelecemos por lá, entre beliches e redes. No dia seguinte, as atividades
já começariam pelamanhã.
Santarém fica no coração da Amazônia, na confluência entre os rios Tapajós e
Amazonas. É um balneário, a “Pérola do Tapajós”, com uma orla turística e lindas
praias como Alter do Chão e Ponta de Pedras. É também uma importante conexão
portuária, que escoa parte da produção do norte e do centro-oeste do Brasil. Fiquei
impressionado emsaber que carne de gado é quase tão barata quanto o peixe, abundante
naquelas águas – decorrência da proximidade com a produção pecuária que
sobe pela rodovia Cuiabá-Santarém. Santarém cresceu rapidamente na última década,
e parte desse crescimento deve ser creditado ao porto da Cargill -multinacional
que produz soja, rações para gado e afins. O coletivo Puraqué é uma potência transformadora na cidade, atuando em diversos projetos ligados a políticas públicas de
tecnologia, mobilização e transformação social.

Otime do Puraqué estava desfalcado de capitão – Jader Gama precisou ir correndo
a Belém para resolver assuntos burocráticos e só voltaria na quarta-feira. Ainda assim,
acordamos na segunda com a casa cheia. Pessoal do Puraqué, da Casa Brasil
Santarém, do Pontão de Cultura, do Projeto Saúde e Alegria, entre outros.
Ao longo dos dias seguintes, trabalhamos algumas questões críticas. Tentamos entender
as forças que influenciam a cidade e o entorno, como o Puraqué está situado
naquele contexto específico, como a cartografia pode ajudar em suas ações atuais e
futuras. Durante o dia, fazíamos experiências – subi mais uma vez a ZASF, desenhei
o mapa do terreno da casa a partir das coordenadas geográficas que coletei caminhando
pelo quintal, projetamos o mapa do Puraqué (21) sobre papel e desenhamos em
cima dele um monte de coisas que não aparecem na base dele: invasões, influência
do porto da Cargill na expansão urbana, conexão com a rodovia, a orla onde vivem
os ricos da cidade, a periferia, os igarapés. Às noites, houve duas programações de cineclube e uma apresentação de carimbó.

Quando Jader voltou, conversamos muito sobre os projetos atuais e planos futuros
deles: a moeda social muiraquitã, o consórcio de compra de computadores, o
projeto jovens codeiros, a intranet de associações comunitárias via wifi, etc. O Puraqué
é um celeiro de ideias e potencialidades, e ali do meio da Amazônia indica
soluções que fazem sentido para o mundo inteiro: populações nativas e mestiças
integrando-se pela internet, relação respeitosa coma floresta, arranjos colaborativos
e dinâmicos de trabalho e produção operados em rede, confiança distribuída. Vale
a pena conferir a pesquisa que a holandesa Ellen Sluis desenvolveu por lá no ano
passado (22). Em especial, o plano de desenvolver um pólo de desenvolvimento de tecnologias livres é algo que me deixa bastante otimista (como possível concretização
do que eu proponho no artigo “Inovação e Tecnologias Livres”) (23).
Voltei para casa com vontade de ter ficado por lá um pouco mais. Todo evento
supõe um deslocamento, uma dimensão em que o tempo corre diferente. Debatemos
profundamente a questão da cartografia como uma ferramenta não somente
para retratar a realidade, mas também para interferir nela, orientar esforços e identificar
caminhos. Além de conhecer gente nova, consegui também trabalhar em questões
que fazem muito sentido parameus planos por aqui (24). Que os mapas críticos se multipliquem!

Veja também os relatos de Tati Wells (25) e Paulo Tavares (26), minhas fotos (27) e a documentação que fiz em tempo real (28).

http://hacklab.comumlab.org
http://hacklab.art.br
http://comumlab.org
http://baobavoador.noblogs.org
http://hackitectura.net/blog/
http://www.mara-stream.org/
http://twitter.com/#!/brunotarin
http://pt.wikipedia.org/wiki/Bruno_Vianna
http://www.antenamutante.net/
10 http://puraque.org.br
11 http://twitter.com/#!/etetuba
12 http://arquetipofake.blogspot.com/
13 http://pt.wikipedia.org/wiki/Gr%C3%A3o-Par%C3%A1
14 http://pt.wikipedia.org/wiki/Cabanagem
15 http://casaraocultural.com
16 http://foradoeixo.org.br/
17 http://www.parquedosigarapes.com.br/
18 http://desvio.cc/blog/zasf-com-sotaque-paraense
19 http://hotglue.org
20 http://desvio.cc/sites/desvio.cc/files/hacknet/
21 http://puraque.org.br/mapas
22 http://mutgamb.org/MutSaz/2011/Janxs/Ponte-eterea-Santarem-Holanda
23 http://efeefe.no-ip.org/livro/lpd/inovacao-tecnologias-livres-2
24 http://ubalab.org
25 http://baobavoador.noblogs.org/post/2011/08/17/hacklab-belem/
26 http://hacklab.comumlab.org/wikka.php?wakka=MapaRelatoem10pontos
27 http://www.flickr.com/photos/felipefonseca/collections/72157627356305771/
28 http://desvio.cc/sites/desvio.cc/files/hacknet/

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