A arte na rua e a rua na arte. Um relato de experiências.

A arte na rua e a rua na arte
Um relato de experiências.
Ana Teixeira

Foquei meu trabalho nos últimos 13 anos em ações reconhecidas por alguns teóricos como «arte relacional«, ou seja, uma arte que toma como horizonte as interações humanas e seu contexto social, mais do que a afirmação de um espaço simbólico autônomo e privado. A maioria dessas ações foi ambientada na rua, em interação com um público bastante diversificado, composto tanto por frequentadores habituais de museus e galerias, quanto por transeuntes não habituados à convivência com obras de arte de qualquer espécie.

O ato de promover essas “ações de rua” está ligado a um desejo de criar, no espaço público, um “lugar da dúvida da realidade”, como diz Waltércio Caldas (1) , ou de engendrar o que o filósofo Michel Foucault chama de heterotopias, espaços que contém «em um só lugar real vários espaços, vários posicionamentos que são em si próprios incompatíveis (2) As heterotopias «supõem sempre um sistema de abertura e fechamento que, simultaneamente, as isola e as torna penetráveis”. Assim vejo as ações que faço: um lugar que questiona o próprio lugar. Acredito que andamos pelo espaço público (e às vezes também pelo privado) anestesiados, e por isso deixamos de ver – pois há ofertas demais, tanto visuais, quanto táteis e sensíveis. Não vemos mais, pois há muito pra ver. Gosto da ideia de criar pequenos curtos-circuitos no tecido da cidade e de seus habitantes.

Na base de minhas ações, encontra-se a noção de troca, seja ela a troca de pequenos doces recheados, denominados sonhos, por outros sonhos, esses de ordem abstrata; ou de palavras por outras palavras. Essas ações têm sua gênese em ações cotidianas do comércio formal e informal. São, porém, articuladas em uma outra estrutura, de caráter híbrido, por reportarem-se tanto às estratégias do comércio quanto às da arte.

«TROCO SONHOS» é uma ação que consiste na montagem de uma banca, como as dos vendedores ambulantes, em lugares de grande fluxo de pessoas. Sobre ela são colocados, em uma bandeja, em média, duzentos sonhos – pequenos bolos recheados e fritos, que, no Brasil, recebem o nome de “sonho”. Um cartaz afixado na banca tem os dizeres: “TROCO SONHOS. ACEITO TODOS OS TIPOS: DOURADOS, ESQUECIDOS, ABANDONADOS, VIVOS, MORTOS, IMPOSSÍVEIS, PRESENTES OU ENTERRADOS”. É proposto aos transeuntes que troquem sonhos comigo: ofereço-lhes um sonho – bolo doce – e eles me dão em troca um sonho seu, gravado por um cinegrafista que me acompanha. As heterotopias «supõem sempre um sistema de abertura e fechamento que, simultaneamente, as isola e as torna penetráveis”. Assim vejo as ações que faço: um lugar que questiona o próprio lugar. Acredito que andamos pelo espaço público (e às vezes também pelo privado) anestesiados, e por isso deixamos de ver – pois há ofertas demais, tanto visuais, quanto táteis e sensíveis. Não vemos mais, pois há muito pra ver. Gosto da ideia de criar pequenos curtos-circuitos no tecido da cidade e de seus habitantes.

 

Essa ação foi executada pela primeira vez em 1998 e pela última em 2006. Foi a primeira das ações urbanas que promovi e foi concebida com a idéia de ser uma oferta diferenciada no cotidiano das ruas. A experiência que esse trabalho trouxe é significativa e tanto a abordagem às pessoas quanto a minha maneira de ver e pensar essa ação foram se modificando com o passar dos anos. Foram mais de 6.000 sonhos trocados em ruas, praças, viadutos, avenidas, e centros culturais de 20 cidades diferentes (3) o que gerou um agrupamento bastante diverso de pessoas, situações e experiências.

O material coletado nas filmagens conta com quase 30 horas de gravação em mini-dv. Um filme com 10 minutos de duração foi feito e já mostrado em exposições no Brasil e na Europa. Pode ser assistido no youtube, no endereço: http://www.youtube.com

 

 

Já «OUTRA IDENTIDADE» é um trabalho que propõe aos transeuntes a escolha de uma identidade diferenciada. Confeccionei cédulas de identidade no mesmo formato, tamanho e cores das originalmente usadas no Brasil, porém sem nome, números ou fotos. Construí um carrinho que se assemelhasse a um escritório ambulante e confeccionei carimbos com dez diferentes frases identitárias: TENHO SONHOS; NÃO TENHO CERTEZAS; AMO E NÃO BASTA; AINDA TENHO TEMPO; AGORA TANTO FAZ; QUERIA MENOS DE MIM ÀS VEZES; NÃO SEI DE MIM; ADORO FALAR SOZINHO; NÃO FAÇO SENTIDO; EU FALO MENTIRAS.

A ação toda se dá da seguinte maneira: levo o carrinho a lugares onde haja grande fluxo de pessoas, estaciono-o, abro o tampo onde estão divisões com os carimbos, as identidades, os plásticos e demais apetrechos; abro a porta lateral onde carrego um banquinho, preparo o material de limpeza das mãos das pessoas (álcool e toalhinhas) e aguardo o primeiro «cliente«. A cada pessoa que se aproxima, interessada, explico que ela pode escolher uma identidade entre aquelas que ofereço e que só tem que me dar em troca sua impressão digital. A pessoa lê as frases no próprio tampo do carrinho e escolhe uma delas (ou mais de uma) que é carimbada no novo documento e em uma página de um pequeno caderno preto. A digital do participante também é reproduzida tanto no caderno, quanto no documento. A «outra identidade» é colocada, então, em uma embalagem apropriada para documentos e entregue ao transeunte.

A idéia que norteia essa ação é a de oferecer, inserida no mercado da economia dita informal, a aquisição de uma outra identidade, não baseada na profissão, na sexualidade, nos cromossomos, na moral ou nas eficiências/deficiências de cada um. Uma identidade onde se sobressaia o desejo, o sonho, ou as sensações. Tais critérios não são nem melhores nem piores do que os tradicionalmente usados como identitários, mas são uma outra opção que pode vir a provocar conflitos, raciocínios ou, no pior dos casos, novas alienações.

Em 2005, ao fazer essa ação em uma praça do bairro da Bela Vista, em São Paulo, fui denunciada por alguns freqüentadores e levada, juntamente com meu carrinho, em um carro de polícia até o 5º Distrito Policial, para prestar esclarecimentos. Lá fiquei por quase 3 horas, apesar do delegado afirmar, em entrevista ao jornal Folha de São Paulo, que foram apenas 15 minutos. (4)

A «banca de sonhos» ou o carrinho que oferece uma outra identidade ativam, basicamente, a troca. Em ambos os casos, troca-se algo material e consumível (o bolinho chamado sonho ou a cédula de identidade carimbada) por algo subjetivo e imaterial (um sonho pessoal) ou, ao menos, não consumível (a impressão digital). Ao mesmo tempo em que tais ações repetem procedimentos usuais do comércio, deles se diferenciam, quando alguém se dispõe a interromper sua rotina e participar da troca. Se o transeunte não optar por deter-se e por saber o que ofereço nas bancas que monto, ou no carrinho que empurro pelas ruas, minha ação se confundirá com qualquer outra oferta presente no espaço público.

Há ainda outras questões a serem destacadas: As ações, ao reafirmarem as estratégias do comércio, dão mais visibilidade aos excessos do contexto consumista. E, ao me misturar aos vendedores ambulantes e, como eles, buscar contato com os passantes, promovo uma equivalência entre o que habitualmente está separado: o mundo da arte e o mundo que está nas ruas.

Trabalhos como os que faço podem ser analisados pela ótica do que o filósofo Jacques Rancière chamou em seu texto A arte além da arte. (Folha de SP, Caderno MAIS!, 24.10.2004) de «arte relacional«, ou seja, uma «arte que busca criar não mais obras, mas situações e relações«. Rancière afirma que os artistas e os atores do mundo da arte acabam por «utilizar seus meios e seus lugares para testemunhar uma realidade das desigualdades, das contradições e dos conflitos que o discurso consensual tende a tornar invisíveis«. Ele comenta também as dificuldades pelas quais passa a arte contemporânea, detectando nos trabalhos atuais o que ele chama de uma «obsessão pelo real«, que assumiria diversas formas, entre elas a do desejo de intervir diretamente na realidade social. Para ele essa seria uma questão oriunda da arte moderna, «habitada pela preocupação de sair de si para tornar-se uma forma de intervenção que transforme a realidade mesma das coisas«. Diz o filósofo que a novidade, então, estaria no fato de a vontade de intervenção ter tomado forma de «assistência individual» aos desfavorecidos, algo rejeitado, anteriormente, tanto pelas vanguardas artísticas como pelos construtores do socialismo. Afirma que se estaria reduzindo «o poder artístico de provocação às tarefas éticas de testemunho sobre um mundo comum e de assistência aos mais desfavorecidos«. Tal afirmação é significativa e parece denunciar um momento peculiar da arte contemporânea. Porém, muitos artistas, alguns indiferentes às teorizações, outros receptivos a elas, desenvolvem seus trabalhos no espaço público não com a intenção de provocar mudanças na estrutura social, mas nela causando pequenas fissuras, deslocamentos e alterações.

Eu, particularmente, prefiro acreditar que mais do que testemunhar a realidade atual é possível intervir nela dando-lhe visibilidade e provocando dúvidas, mesmo que momentâneas e pontuais.

Acredito ser esse o caso da ação denominada “Escuto histórias de amor”, que realizei em nove países: Brasil, Alemanha, França, Itália, Espanha, Portugal, Chile, Canadá e Dinamarca. A ação aconteceu da seguinte maneira: em lugares com grande fluxo de pedestres de cada cidade sentei-me, deixando um lugar livre ao meu lado e, enquanto tricotava uma lã vermelha, esperava por pessoas que quisessem me contar uma história de amor. Um cartaz, ao meu lado, anunciava, no idioma local, a minha intenção. A reação das pessoas foi variada e em alguns lugares ninguém falou comigo, em outros, escutei várias histórias diferentes. Cabe comentar que eu imaginava ouvir histórias sem entendê-las, porém isso nunca aconteceu. Quando as pessoas percebiam que eu não falava alemão, por exemplo, elas se comunicavam em inglês. Compreendi que as pessoas não querem apenas ser ouvidas, elas querem ser entendidas. Este trabalho foi feito pela última vez em São Paulo, durante a Virada Cultural de 2012. Foram sete horas ininterruptas escutando histórias de amor e o tricô, iniciado na Alemanha em 2005, agora tem sete metros de comprimento e muitas histórias guardadas em sua trama. As ações foram filmadas e uma vídeo-instalação com seis destes filmes foi montada em Toronto, no Canadá, em junho/julho de 2008. Os filmes não tem som e as histórias são mantidas em segredo. O som que preenche a sala expositiva é o do barulho das ruas de todas as cidades visitadas.

Histórias, aliás, é o que não faltam em minha experiência de levar a arte para o espaço público, histórias de confrontos e negociações. Como afirma o artista e teórico francês Daniel Buren:

A rua não é um terreno conquistado. Na melhor das hipóteses é um terreno a conquistar, e para tanto são necessárias outras armas que aquelas forjadas ao longo do século na tradição, por vezes complacente, dos museus.” (5)

A arte que dialoga com questões sociais e com o espaço urbano é ainda um desafio tanto para os teóricos quanto para os artistas, ambos trabalhando em searas diferentes, mas complementares. Quero crer que talvez ainda não tenham sido articulados conceitos suficientes para abarcar o espectro de atuações voltadas ao que, por falta de um termo melhor, chama-se «arte relacional».


 

 

1 “A arte não é o lugar de entendimento da realidade, a arte é o lugar da dúvida da realidade. É o momento onde a realidade se oferece como latência produtiva. A arte não trabalha com o conceito de realidade, ela trabalha com a possibilidade de uma coisa vir a ser mais que um conceito de realidade. Para a arte não importa se este copo é um copo, importa o que ele pode vir a ser se ele não for o que ele é”. Waltércio Caldas

2 Michel Foucault, Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema/ Michel Foucault; Ditos e escritos, pp 418

3 Quando essa ação foi feita em frente ao MAM, Museu de Arte Moderna de São Paulo, na Avenida Higienópolis, durante a abertura da mostra «São Paulo Turística», recebeu uma caracterização especial: a transmissão ao vivo da ação para dentro do Museu. O filme, registro da ação, fez parte da mostra, de 31.05 a 22.07 de 2001. o que gerou um agrupamento bastante diverso de pessoas, situações e experiências

4 Reportagem no Jornal Folha de São Paulo, Caderno Cotidiano, de 04 de julho de 2005.

5 Daniel BUREN, Textos e entrevistas escolhidos, p. 175

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